Tempos desafiadores

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por Haroldo Jacobovicz

Sou um sujeito observador e atento a detalhes. Gosto de olhar o mundo com uma lente ampliada para interpretar cenários, identificar tendências e projetar rumos. Essa característica me leva a acompanhar constantemente as notícias de economia, finanças e negócios. Durante a pandemia esse exercício foi intensificado em função das diversas mudanças de comportamento, rotinas e dinâmicas a que todos fomos submetidos. Ultimamente, somos convidados a olhar por um novo ângulo ou a reavaliar uma visão construída anteriormente a todo momento. São tempos desafiadores!

Trabalho com tecnologia desde a década de 1980, época em que o mundo era analógico e a vida digital remetia aos filmes de ficção científica. Acompanhei o advento da internet, a bolha das empresas ponto.com, e o surgimento dos precursores de novos paradigmas que refletem até os dias atuais na sociedade. Aqueles que começaram seus negócios em garagens ou alojamentos universitários como o Macintosh da Apple de Steve Jobs, o Windows da Microsoft de Bill Gates e as redes sociais do Facebook de Mark Zuckerberg, além de tantas outras inovações tecnológicas que vieram depois disso e continuam a se multiplicar.

Sou um admirador das inovações que a tecnologia é capaz de promover e sempre as encarei como fatores de transformação econômica e social, responsáveis por impactar o mundo e a vida das pessoas para melhor. Sim, os avanços tecnológicos têm sido fundamentais para reduzir desigualdades, estimular desenvolvimento, aprimorar o acesso ao conhecimento e promover a troca de informações de maneira mais rápida, eficiente, orgânica e democrática.

Mix de retrocesso e aceleração

Infelizmente, no Brasil, muitos avanços alcançados foram comprometidos nos últimos anos, primeiramente pela recessão econômica deflagrada em meados de 2014 e agravada mais recentemente durante a pandemia de Covid-19. A pesquisa “Escalada da Desigualdade” da FGV Social, que acontece desde agosto de 2019, mostrou dados alarmantes ao fim do primeiro trimestre de 2021. A renda mensal média do brasileiro atingiu o pior patamar desde o início da mensuração, ficando em R$ 995, pela primeira vez inferior a R$ 1.000, o que refletiu diretamente no indicador de bem estar social que caiu 19,4% em um ano após o início da pandemia.

Ao mesmo tempo em vivemos um dos momentos mais críticos da história do país, houve uma extraordinária aceleração da digitalização em todos os setores, tanto no campo profissional como pessoal. Com o distanciamento social e a necessidade de novos modelos de comercialização de produtos e serviços para a sobrevivência dos negócios, acompanhamos a migração e consolidação dos canais de vendas e relacionamento com clientes na Internet. Segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel – o uso da internet durante a pandemia aumentou 50%.

Cada vez mais as vendas realizadas por pequenas e microempresas têm sido feitas no ambiente digital, como marketplaces, redes sociais, canais de comunicação, WhatsApp e demais plataformas de comércio online. Quem estava em dúvida sobre quando migrar para o ambiente online, foi praticamente forçado a se digitalizar numa onda de “update or die”, expressão em inglês que corresponde a “atualize-se ou morra”.

Segundo relatório “Webshoppers” da Ebit Nielsen, o faturamento dos marketplaces no Brasil passou de R$ 48 bilhões em 2019, para R$ 73 bilhões em 2020, uma variação de 52%. Foram realizados no último ano, 148,6 milhões de pedidos, um aumento de 38% em relação ao ano anterior.

Sem medo de empreender

Se de um lado sofremos com a perda de ocupação das pessoas causada por desemprego e menor participação trabalhista; de outro vemos o surgimento de novas formas para geração de renda, em especial remotamente e online. A quantidade de pessoas desbravando o mercado como empreendedores autônomos nunca foi tão grande.

Muita gente que, antes da pandemia, não teria abandonado um emprego estável para se lançar em um negócio próprio assumiu esse risco. O empreendedor é aquele que enxerga oportunidade onde os outros não estão vendo. São pessoas dispostas a trabalhar mais horas que o normal para ter uma remuneração inicial que nem sempre é proporcional à dedicação dispensada, que sonham em ver a empresa crescer e persistem no sonho, a despeito das dificuldades.

Segundo a pesquisa Global Entrepreneurship Monitor, realizada em conjunto com o Sebrae, a taxa de empreendedorismo no país bateu recorde durante a pandemia, com maior número de novos autônomos nos últimos 20 anos. Dados do Ministério da Economia apontam que de cada dez empresas abertas em 2020, oito foram na modalidade MEI (Empreendedorismo Individual), provavelmente um reflexo das altas taxas de desemprego. Segundo informações da Receita Federal, as categorias Salão de Beleza, Comércio Varejista de Roupas e Acessórios, e Profissionais de Obras de Alvenaria são os destaques no crescimento em novos registros como Micro Empreendedores Individuais (MEI).

Tamanha movimentação de novos empreendedores remete à minha primeira jornada empreendedora, quase quarenta anos atrás, ao fundar a Microsystem, empresa que ambicionava automatizar estabelecimentos comerciais e de serviços. Na época, o projeto não vingou, pois o mercado brasileiro ainda não estava pronto para a digitalização. Depois desse primeiro empreendimento, passei por experiências profissionais atuando como executivo nas áreas de vendas, estratégia comercial e gestão na iniciativa privada e estatal, antes de voltar a empreender.

E ao retomar a trajetória empreendedora, no início dos anos 1990, voltei ao foco em tecnologia, principalmente com soluções para instalação e manutenção de sistemas de gestão para empresas. Um nicho de mercado promissor que hoje passou a ser mandatório para fazer girar a roda da economia global.

O core é a tecnologia

De acordo com relatório da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), a área de Tecnologia da Informação (TI) demandará cerca de 420 mil novos profissionais até 2024 para a continuidade e crescimento de seus negócios. A quantidade de mão de obra qualificada necessária não poderá ser atendida diante do número insuficiente de especialistas formados anualmente pelas instituições de ensino superior e técnico, o que dispara um alerta para o risco de um apagão de profissionais qualificados aptos a ocupar os postos disponíveis. Anualmente, o Brasil capacita 46 mil pessoas com perfil tecnológico preparadas para atuar na área de TI. No entanto, a projeção da Brasscom aponta que serão necessários cerca de 70 mil profissionais ao ano para que as vagas abertas sejam completamente ocupadas.

Isso sem falar em profissionais brasileiros que são contratados por empresas estrangeiras numa nova tendência: muitas empresas de qualquer lugar estão contratando profissionais de qualquer lugar. A falta de mão de obra em TI é também realidade no exterior e os outros países estão se movimentando. Apesar de insuficiente em número, a qualificação dos profissionais brasileiros é considerada alta e atrai a atenção de muitos países. O Brasil abriga a maior população de desenvolvedores Java do mundo, é o segundo melhor em sistemas legados e desenvolvimento de mainframe (atrás apenas dos EUA) e nossos programadores estão na quarta posição mundial entre os melhores desenvolvedores de front-end.

Além disso, a necessidade de isolamento potencializou o estilo de vida dos nômades digitais. São profissionais que, graças à tecnologia, não dependem de uma base fixa para trabalhar e, assim, rodam o mundo, muitas vezes escolhendo lugares turísticos e exóticos. A única exigência das empresas que contratam os serviços é que o novo funcionário tenha acesso à internet de qualidade. Pesquisa realizada pela consultoria americana MBO Partners, aponta que o número de nômades digitais cresceu cerca de 50% em 2020. Pelos critérios da pesquisa, entram nessa classificação os trabalhadores que se mudaram, por conta própria, no mínimo, três vezes em um ano. 

Crise ou Oportunidade

Apesar do aquecimento no setor de Tecnologia da Informação, a empregabilidade sofre com as menores taxas históricas. Segundo avaliação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) a crise do mercado de trabalho gerada pela pandemia da Covid-19 está longe de terminar e o crescimento do emprego será insuficiente para compensar as perdas sofridas pelo menos até 2023. As projeções da OIT constam no relatório intitulado “Perspectivas Sociais e do Emprego no Mundo: Tendências 2021″.

A redução no número de postos de emprego e horas de trabalho resultou na queda drástica da renda e no consequente aumento da pobreza em todo o mundo. Em comparação com 2019, globalmente, 108 milhões a mais de trabalhadores passaram a viver na faixa da pobreza ou extrema pobreza (o que significa que eles e suas famílias vivem com o equivalente a menos de US$ 3,20 por pessoa por dia). Além disso, globalmente, o emprego jovem caiu 8,7% em 2020, em comparação com 3,7% do emprego dos adultos, com a queda mais pronunciada observada em países de renda média. As consequências deste retrocesso e da maior dificuldade para os jovens conquistarem o primeiro emprego no mercado de trabalho podem se prolongar por anos.

No Brasil, o cenário é ainda mais preocupante pois enfrentamos o fantasma da evasão escolar. Pesquisa Datafolha encomendada pela Fundação Lemann, Itaú Social e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostra dados sobre educação a partir da perspectiva das famílias. Para pais e responsáveis, 40% dos estudantes de 6 a 18 anos não estão evoluindo na aprendizagem, não estão motivados e admitem que pensam em abandonar os estudos.

Outro ponto relevante da pesquisa diz respeito ao impacto da pandemia na alfabetização. De acordo com os pais e responsáveis, 88% dos estudantes matriculados no 1º, 2º e 3º ano do Ensino Fundamental estão em “processo de alfabetização”. Dessa proporção, mais da metade (51%) das crianças ficou no mesmo estágio de aprendizado, ou seja, não aprendeu nada de novo (29%), ou desaprendeu o que já sabia (22%), segundo a percepção dos responsáveis.

A pesquisa identificou que 96% dos estudantes receberam algum tipo de atividade escolar neste ano, mas isso não se reflete necessariamente na percepção em relação a um bom rendimento escolar. Para 86% dos pais e responsáveis, o desempenho escolar dos seus filhos antes da pandemia era ótimo ou bom e, agora, esse índice caiu para 59% – diferença de 27 pontos percentuais.

Como em todas as situações, há oportunidades e ameaças, luz e sombra. Vai da forma como conseguiremos lidar com as novas circunstâncias desenhadas a partir de 2020 que nos desafiam a rever a lógica empregada na tomada de algumas decisões. Diante de tantas mudanças, é o momento de vislumbrar caminhos para empoderar a população, seja ela ainda em formação, seja no mercado de trabalho, como autônomos ou empreendedores. São pessoas que promovem o desenvolvimento de um país e somente as pessoas têm condições de construir um mundo melhor pós-pandemia. Certamente não é tarefa fácil, mas sigo acreditando no potencial – individual e coletivo – desta nação, confiante em tempos melhores fundamentados em oportunidades decorrentes da crise.

Haroldo Jacobovicz é Engenheiro Civil e empreendedor em negócios inovadores de tecnologia.

É membro do Conselho de Administração da Horizons Telecom, fundada por ele em 2010, e CEO do grupo e-Governe.

Atualmente, está desenvolvendo um novo empreendimento digital, ainda confidencial.

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